O FACEBOOK ESTÁ USANDO VOCÊ
Lori Andrews*, publicado em 04.02.12
Semana passada, o Facebook firmou documentos com o governo que permitirão a ele a venda de ações ao público. Estima-se que elas valham ao menos 75 bilhões de dólares. Mas diferente de outras grandes corporações, o Facebook não tem um estoque de widgets ou gadgets, carros ou telefones. O estoque do Facebook consiste em informação pessoal – sua e minha.
O Facebook faz dinheiro vendendo espaços publicitários a companhias que querem chegar até nós. Os anunciantes escolhem palavras-chave ou detalhes – como status de relacionamento, localização, atividades, livros favoritos e emprego – e então o Facebook mostra os anúncios aos alvos selecionados entre seus 845 milhões de usuários. Se você revelar que gosta de cupcakes, mora em um determinado bairro e convidou amigos, conte com um anúncio de uma loja de cupcakes da redondeza aparecendo em sua página. A magnitude da informação online que o Facebook tem disponível sobre cada um de nós para marketing direcionado é chocante. Na Europa, as pessoas tem o direito garantido por lei de saberem quais dados as companhias tem sobre elas, mas esse não é o caso nos Estados Unidos.
O Facebook teve 3,2 bilhões de dólares de rendimento relativo ao marketing no ano passado, 85% de sua renda total. Ainda assim o arquivo de dados e renda obtida através de publicidade do Facebook são pequenos se comparados com alguns outros. O Google obteve 10 vezes mais, com renda estimada de 36,5 bilhões de dólares em 2011, analisando o que os usuários enviaram por Gmail e pesquisaram na internet, e então usando esses dados para vender anúncios publicitários. Centenas de outras companhias apostaram nos dados pessoais online depositando softwares chamados cookies ou outros mecanismos de rastreio nos computadores e navegadores das pessoas. Se você mencionou ansiedade em algum em-mail, fez uma pesquisa no Google por “stress” ou começou a usar um diário médico online que permite a você monitorar seu humor, espere por anúncios de medicamentos e serviços para tratar sua ansiedade.
Anúncios que aparecem na sua tela podem parecer úteis, ou na pior das hipóteses, uma praga. Mas eles são muito mais do que isso. Os bits e bytes sobre sua vida podem ser facilmente usados contra você. Assim como você pode conseguir um emprego, crédito ou empréstimo baseados na sua “cópia” digital – você pode nunca saber que foi por causa dela que você foi rejeitado.
Material obtido online tem sido usado contra pessoas batalhando pela custódia de crianças ou defendendo a si mesmas em casos criminais. A LexisNexis, empresa norte americana, tem um produto chamado Accurint para aplicação da lei, que dá ao governo agentes de informação sobre o que as pessoas tem feito nas redes sociais. O Internal Revenue Service, departamento equivalente a Receita Federal, procura no Facebook e MySpace por evidências da renda de sonegadores de impostos e seus paradeiros, e o United States Citizenship and Immigration Services, que trata dos assuntos relativos a imigração e cidadania norte americana, é conhecido por inspecionar fotos e postagens afim de confirmar relações familiares ou eliminar casamentos fictícios. Empregadores ocasionalmente decidem contratar ou não alguém baseados em seus perfis online: há um estudo indicando que 70% dos recrutadores e profissionais de recursos humanos nos Estados Unidos rejeitaram candidatos baseados nas informações encontradas online. Uma empresa chamada Spokeo reúne dados online para empregadores, público em geral e quem mais esteja interessado. A empresa inclusive posta anúncios incitando “Recrutadores do RH – Cliquem aqui agora!” e pedindo as mulheres que submetam os e-mails de seus namorados para uma análise de suas fotos e atividades online para descobrir se “Ele está te traindo?”
Os estereótipos estão vivos e em voga quando se fala de agrupamento de dados. Seu pedido de crédito pode ser rejeitado não com base no seu próprio histórico financeiro, mas com base em dados agrupados – o que pessoas com preferências similares as suas andaram fazendo. Se guitarristas ou divorciados tem mais probabilidade de não pagar suas contas de cartões de crédito em dia, então o fato de você ter dado uma olhada em anúncios de guitarras ou ter enviado um e-mail a um advogado especialista em divórcios pode fazer com que um agrupador de dados o classifique como menos merecedor de crédito. Ao retornar de sua lua de mel, um homem de Atlanta descobriu que seu limite de crédito tinha diminuido de $10,800 para $3,800. A mudança não foi baseada em nada que ele tivesse feito, e sim em dados agrupados. Uma carta da companhia de crédito disse a ele: “Outros clientes que usaram seus cartões em estabelecimentos onde você fez compras recentemente tem um histórico de maus pagadores com a American Express.”
Ainda que leis permitam que as pessoas questionem informações falsas em relatórios de crédito, não existem leis exigindo que agrupadores de dados revelem o que sabem a seu respeito. Se eu uso o Google para pesquisar “diabetes” para um amigo ou “encontro drogas estupro” para um mistério que estou escrevendo, agrupadores de dados assumem que essas pesquisas revelam minha própria saúde e propensões. Porque nenhuma lei regula que tipo de dados esses agrupadores podem coletar, eles mesmos fazem as próprias regras.
Em 2007 e 2008, a companhia de publicidade online NebuAd contratou seis provedores de internet para que esses instalassem hardwares em suas rede, monitorando a atividade online dos usuários e transmitindo esses dados para os servidores da NebuAd para análise e aplicação em marketing. Durante uma média de seis meses, NebuAd copiou todo e-mail, busca ou compra na Web que 400.000 pessoas executaram na internet. Outras companhias, como a Healthline Networks Inc., tem limites internos que estabelecem quanta informação pessoal eles coletarão. A Healthline não usa informação sobre as pesquisas das pessoas a respeito de HIV, impotência ou distúrbios alimentares para selecionar alvos publicitários, mas usa informações sobre bipolaridade, bexiga hiperativa e ansiedade, que podem ser tão estigmatizantes como os tópicos protegidos da lista.
Nos anos setenta, um professor de comunicação que estudou na Northwestern University chamado John McKnight popularizou o termo “redlining” para descrever a falência de bancos, seguradoras e outras instituições ao oferecer seus serviços a bairros suburbanos. O termo veio da prática de bancos oficiais que desenhavam uma linha vermelha (red line) em um mapa indicando onde eles não investiriam. Mas o uso desse termo se expandiu para cobrir uma ampla gama de práticas de discrimação racial, tais como não oferecer empréstimos para moradia para afro-americanos, até para aqueles que eram ricos ou classe média.
Agora o mapa usado no “redlining” não é um mapa geográfico, mas um mapa de suas viagens na Web. O termo “Weblining” descreve a prática de negar oportunidades a indivíduos baseado em suas cópias digitais. Você pode ter um plano de saúde rejeitado com base em alguma pesquisa que tenha feito no Google sobre uma condição médica. Você pode receber um limite de crédito menor, não por causa de seu histórico financeiro, mas por causa de sua raça, sexo ou CEP ou tipo de sites que você visita.
Agrupamento de dados tem implicações sociais também. Quando jovens em bairros pobres são bombardeados com anúncios de escolas técnicas, eles terão mais probabilidade que outros jovens de sua faixa etária de renunciar a faculdade? E quando mulheres são expostas a artigos sobre celebridades ao invés de artigos sobre tendências do mercado de ações, elas terão menos chance de desenvolver sua compreensão financeira? Publicitários estão traçando as novas linhas vermelhas, limitando as pessoas aos papéis que a sociedade espera que elas desempenhem.
As práticas dos agrupadores de dados conflituam o que as pessoas dizem querer. Uma pesquisa de opinião pública voltada a consumidores feita em 2008 descobriu que 93% dos entrevistados disseram que as companhias de internet deviam sempre pedir permissão antes de usar informação pessoal, e 72% queriam poder optar por não serem rastreados online. Um estudo da Princenton Survey Research Associates em 2009, usando uma amostra de mil pessoas, descobriu que 69% dos Estados Unidos pensa que devia ser adotada uma lei dando as pessoas o direito de saber tudo que um um site sabe a respeito delas. Nós precisamos de uma lei do não-rastreie, parecida com a lei do não-telefone (relativa ao telemarketing). Agora a questão não é só se o meu jantar vai ser interrompido por uma ligação de telemarketing. A questão é se meus sonhos serão esmagados por uma coleção de bits e bytes da qual eu nunca tive controle e pela qual companhias não podem ser atualmente responsabilizadas.
*Lori Andrews é professora de Direito na Faculdade Chicago-Kent de Direito e a autora de “Eu sei quem você é e eu sei o que você fez: Redes Sociais e a Morte da Privacidade.”
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Esta marcha está desafiando o domínio do dinheiro
John Holloway
Estes são dias de ira. Ira no mundo árabe, é claro, mas também nas ruas de Atenas, Dublin, Roma, Paris, Madri, e agora uma alta e clamorosa ira nas ruas de Londres.
Uma era de crise é uma era de esperanças frustradas, de vida frustrada. Queremos ir à universidade, mas é muito caro. Precisamos de cuidados médicos de qualidade, mas não podemos pagar por eles. Precisamos de casas e vemos casas que estão vazias, mas elas não são para nós. Ou, para as milhões de pessoas famintas: queremos comer, vemos que há muita comida para todos, mas há algo entre nós e a comida — dinheiro, ou a falta dele.
Então nos iramos. Ficamos ainda mais irados pelo fato de não sabermos o que fazer com nossa ira, e como usa-la para fazer um mundo diferente.
Nos iramos contra o governo. Mas sabemos que não há resposta vinda daí. A democracia representativa mantém nossa ira cativa: como um rato em um labirinto, corremos de um partido ao outro sem encontrar a saída. As coisas não melhoram e nem poderiam, porque por trás do poder político se encontra um outro poder maior: o poder do capital, o poder do dinheiro.
Então nos iramos contra o mando do dinheiro. Não contra o dinheiro em si, necessariamente, porque nesta sociedade precisamos de dinheiro para viver. Mas nos iramos com o império do dinheiro, contra uma sociedade em que o dinheiro domina. O dinheiro é uma grande escavadeira separando o mundo. É uma força insidiosa que penetra em um número cada vez maior de aspectos da nossa vida. O dinheiro mantém a coesão da sociedade, mas faz isso de uma forma que acaba por esgarça-la.
Em um determinado momento parecia que tínhamos conseguido fazer o domínio do dinheiro recuar, ao menos em áreas como a saúde e a educação. Isso nunca chegou a acontecer de fato, e por um longo tempo nós assistimos à reimposição progressiva do domínio do dinheiro como o critério mais importante de cada decisão. Agora o dinheiro emergiu em toda a sua arrogância. É isso que nos deixa tão bravos: o governo proclamou abertamente “O dinheiro é o rei, façam vênias, curvem-se ao rei!”.
Irem-se, portanto; irem-se contra o domínio do dinheiro! Enquanto o dinheiro comandar, a injustiça e a violência prevalecem — o dinheiro é o abismo entre as famintas e a comida, o fosso entre os desabrigados e as casas. Enquanto reinar o dinheiro estaremos presos em uma dinâmica que ninguém controla e que está destruindo visivelmente a possibilidade da existência humana.
O dinheiro parece todo-poderoso, contudo não é. É simplesmente uma forma de coesão social, e depende da nossa aceitação. Então digam “não”. Façam alguma outra coisa, façam as coisas de maneira diferente. Recusem e criem.
Na verdade passamos boa parte de nossas vidas criando espaços protegidos da ofensiva do dinheiro. Criamos áreas em que sua passagem é proibida, colocamos placas que dizem: “Aqui as pessoas mandam! Aqui, em nossa relação com nossas crianças e nossos amigos, em nossas escolas, em nossos hospitais, há outra dinâmica funcionando. Dinheiro, não entre”. Temos muitos nomes diferentes para esses momentos ou espaços: amor, amizade, confiança.
As falhas do domínio do dinheiro estão por toda parte. Podem ser vistas não só no amor dos filhos e amigos mas nas revoltas e experimentos onde as pessoas estão dizendo: “Não, não aceitaremos o domínio do dinheiro, faremos as coisas de outro jeito”. Tantas recusas e criações, tantas dignidades — às vezes grandes, às vezes pequenas, sempre contraditórias. Ocupações, centros sociais, hortas comunitárias, estações de rádio alternativas, software livre, rebeliões e seminários focados na única questão científica que nos resta, que é a de como podemos parar nossa corrida em direção à autodestruição.
A única esperança de criar um mundo radicalmente diferente é pela criação, expansão, multiplicação e confluência dessas brechas. Façam recuar o domínio do dinheiro
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“Ocupe Wall Street” é diferente dos protestos da década de 90
É muito mais fácil agora do que em 1999 promover conexão com o público, e assim expandir o movimento
Naomi Klein, Folha de S.Paulo, 16 de outubro de 2011
Uma coisa que sei é que 1% das pessoas amam as crises.
Quando o público está em pânico e desesperado, e ninguém parece saber o que fazer, o momento é ideal para forçar a aprovação de uma extensa lista de políticas que beneficiam as empresas: privatizar a educação e a Previdência Social, reduzir os serviços públicos, remover os últimos obstáculos ao poder das grandes companhias. Em meio à crise, isso vem acontecendo no mundo inteiro.
Só existe uma coisa capaz de bloquear essa tática, e felizmente é uma coisa muito grande: os outros 99% das pessoas. E esses 99% estão saindo às ruas, de Madison a Madri, para dizer: “Não, não pagaremos pela sua crise”.
O slogan surgiu em 2008, na Itália. Ricocheteou para a Grécia, França e Irlanda, e por fim voltou. “Por que eles estão protestando?”, indagam os sabichões embasbacados na televisão. Enquanto isso, o resto do mundo pergunta: “Por que demoraram tanto? Estávamos imaginando quando vocês enfim se dignariam a aparecer. Bem-vindos”.
Muita gente traçou paralelos entre o movimento “Ocupe Wall Street” e os chamados protestos antiglobalização que conquistaram a atenção do planeta em 1999, em Seattle.
Foi a última ocasião em que um movimento mundial, descentralizado e comandado por jovens tomou por alvo direto o poder das empresas. E me orgulho por ter participado daquilo que chamávamos “o movimento dos movimentos”.
Mas há diferenças importantes. Por exemplo, nós escolhemos como alvo conferências de cúpula: da Organização Mundial de Comércio (OMC), do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Grupo dos 8.
Mas esses eventos são transitórios por natureza, o que nos tornava igualmente transitórios. Aparecíamos, conquistávamos manchetes no mundo todo e em seguida desaparecíamos. E no frenesi e patriotismo excessivo que se seguiram aos ataques do 11 de Setembro, foi fácil nos varrer do cenário, ao menos nos Estados Unidos.
Já o “Ocupe Wall Street” tem alvo fixo. E não definiu um prazo para sua presença, o que é sábio. Apenas quem se mantém firme pode criar raízes. E isso é crucial.
Na Era da Informação, muitos movimentos brotam como belas flores, mas logo morrem. Isso acontece porque não criam raízes e não têm planos de longo prazo para se sustentar.
Ser horizontal e profundamente democrático, é maravilhoso. Esses princípios são compatíveis com o árduo trabalho de construir estruturas e instituições firmes para suportar futuras tempestades. Tenho grande fé nisso.
Há mais uma coisa que esse movimento está fazendo direito: assumiu um compromisso para com a não violência. E essa imensa disciplina significou, em incontáveis ocasiões, que as reportagens da mídia tivessem por tema a brutalidade policial, injustificada e repugnante. Enquanto isso, o apoio ao movimento só cresce.
Mas a maior diferença que a década de distância entre os dois movimentos produziu é que, em 1999, nós estávamos atacando o capitalismo no pico de um boom frenético. O desemprego era baixo, as carteiras de ações propiciavam fortes lucros. A mídia estava embriagada pelo acesso fácil ao dinheiro. Então, todos preferiam falar mais sobre as empresas iniciantes de internet do que sobre os esforços para paralisar atividades reprováveis.
Nós insistíamos em que a desregulamentação que havia possibilitado aquele frenesi teria um custo. Que ela havia rebaixado os padrões trabalhistas. Que prejudicava o meio ambiente. As empresas se tornavam mais poderosas que os governos, e prejudicando nossas democracias.
Mas, para ser honesta, enfrentar um sistema econômico baseado em cobiça era uma parada indigesta enquanto as coisas iam bem, ao menos nos países ricos.
Passados 10 anos, parecem não existir mais países ricos. Apenas muitas e muitas pessoas ricas. Pessoas que enriqueceram saqueando o patrimônio público e exaurindo os recursos naturais do planeta.
O ponto é que hoje todos podem ver que o sistema é profundamente injusto e está escapando ao controle. A cobiça descontrolada devastou a economia mundial, e está devastando o mundo natural.
Estamos pescando demais em nossos oceanos, poluindo nossas águas com exploração petroleira e recorrendo às formas de energia mais sujas do planeta.
Esses são os fatos práticos. São tão gritantes, tão óbvios, que é muito mais fácil agora do que em 1999 promover conexão com o público, e assim expandir o movimento.
Temos de tratar esse belo movimento como se fosse a coisa mais importante do mundo. Porque de fato é.
NAOMI KLEIN, 41, é autora de “A Doutrina do Choque -a Ascensão do Capitalismo de Desastre”. Reproduzido pelo “New York Times”, este discurso saiu inicialmente no “Occupied Wall Street Journal”.
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Zizek na acampada de Wall Street
publicado em 11/10/2011 em boitempoeditorial.wordpress.com
Slavoj Žižek visitou a Liberty Plaza, em Nova Iorque, para falar ao acampamento de manifestantes do movimento Occupy Wall Street (Ocupe Wall Street), que vem protestando contra a crise financeira e o poder econômico norte-americano desde o início de setembro deste ano.
O filósofo nos enviou a íntegra de seu discurso para publicarmos em nosso Blog, que segue abaixo em tradução de Rogério Bettoni. Caso deseje ler a versão original em inglês, está disponível no site da Verso Books (assim como outros comentários de filósofos e cientistas sociais sobre o movimento Occupy Wall Street).
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Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos tendo aqui. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim. Nossa mensagem básica é: o tabu já foi rompido, não vivemos no melhor mundo possível, temos a permissão e a obrigação de pensar em alternativas. Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo teremos de enfrentar questões realmente difíceis – questões não sobre aquilo que não queremos, mas sobre aquilo que QUEREMOS. Qual organização social pode substituir o capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem.
Então não culpe o povo e suas atitudes: o problema não é a corrupção ou a ganância, mas o sistema que nos incita a sermos corruptos. A solução não é o lema “Main Street, not Wall Street”, mas sim mudar o sistema em que a Main Street não funciona sem o Wall Street. Tenham cuidado não só com os inimigos, mas também com falsos amigos que fingem nos apoiar e já fazem de tudo para diluir nosso protesto. Da mesma maneira que compramos café sem cafeína, cerveja sem álcool e sorvete sem gordura, eles tentarão transformar isto aqui em um protesto moral inofensivo. Mas a razão de estarmos reunidos é o fato de já termos tido o bastante de um mundo onde reciclar latas de Coca-Cola, dar alguns dólares para a caridade ou comprar um cappuccino da Starbucks que tem 1% da renda revertida para problemas do Terceiro Mundo é o suficiente para nos fazer sentir bem. Depois de terceirizar o trabalho, depois de terceirizar a tortura, depois que as agências matrimoniais começaram a terceirizar até nossos encontros, é que percebemos que, há muito tempo, também permitimos que nossos engajamentos políticos sejam terceirizados – mas agora nós os queremos de volta.
Dirão que somos “não americanos”. Mas quando fundamentalistas conservadores nos disserem que os Estados Unidos são uma nação cristã, lembrem-se do que é o Cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade livre e igualitária de fiéis unidos pelo amor. Nós, aqui, somos o Espírito Santo, enquanto em Wall Street eles são pagãos que adoram falsos ídolos.
Dirão que somos violentos, que nossa linguagem é violenta, referindo-se à ocupação e assim por diante. Sim, somos violentos, mas somente no mesmo sentido em que Mahatma Gandhi foi violento. Somos violentos porque queremos dar um basta no modo como as coisas andam – mas o que significa essa violência puramente simbólica quando comparada à violência necessária para sustentar o funcionamento constante do sistema capitalista global?
Seremos chamados de perdedores – mas os verdadeiros perdedores não estariam lá em Wall Street, os que se safaram com a ajuda de centenas de bilhões do nosso dinheiro? Vocês são chamados de socialistas, mas nos Estados Unidos já existe o socialismo para os ricos. Eles dirão que vocês não respeitam a propriedade privada, mas as especulações de Wall Street que levaram à queda de 2008 foram mais responsáveis pela extinção de propriedades privadas obtidas a duras penas do que se estivéssemos destruindo-as agora, dia e noite – pense nas centenas de casas hipotecadas…
Nós não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema que merecidamente entrou em colapso em 1990 – e lembrem-se de que os comunistas que ainda detêm o poder atualmente governam o mais implacável dos capitalismos (na China). O sucesso do capitalismo chinês liderado pelo comunismo é um sinal abominável de que o casamento entre o capitalismo e a democracia está próximo do divórcio. Nós somos comunistas em um sentido apenas: nós nos importamos com os bens comuns – os da natureza, do conhecimento – que estão ameaçados pelo sistema.
Eles dirão que vocês estão sonhando, mas os verdadeiros sonhadores são os que pensam que as coisas podem continuar sendo o que são por um tempo indefinido, assim como ocorre com as mudanças cosméticas. Nós não estamos sonhando; nós acordamos de um sonho que está se transformando em pesadelo. Não estamos destruindo nada; somos apenas testemunhas de como o sistema está gradualmente destruindo a si próprio. Todos nós conhecemos a cena clássica dos desenhos animados: o gato chega à beira do precipício e continua caminhando, ignorando o fato de que não há chão sob suas patas; ele só começa a cair quando olha para baixo e vê o abismo. O que estamos fazendo é simplesmente levar os que estão no poder a olhar para baixo…
Então, a mudança é realmente possível? Hoje, o possível e o impossível são dispostos de maneira estranha. Nos domínios da liberdade pessoal e da tecnologia científica, o impossível está se tornando cada vez mais possível (ou pelo menos é o que nos dizem): “nada é impossível”, podemos ter sexo em suas mais perversas variações; arquivos inteiros de músicas, filmes e seriados de TV estão disponíveis para download; a viagem espacial está à venda para quem tiver dinheiro; podemos melhorar nossas habilidades físicas e psíquicas por meio de intervenções no genoma, e até mesmo realizar o sonho tecnognóstico de atingir a imortalidade transformando nossa identidade em um programa de computador. Por outro lado, no domínio das relações econômicas e sociais, somos bombardeados o tempo todo por um discurso do “você não pode” se envolver em atos políticos coletivos (que necessariamente terminam no terror totalitário), ou aderir ao antigo Estado de bem-estar social (ele nos transforma em não competitivos e leva à crise econômica), ou se isolar do mercado global etc. Quando medidas de austeridade são impostas, dizem-nos repetidas vezes que se trata apenas do que tem de ser feito. Quem sabe não chegou a hora de inverter as coordenadas do que é possível e impossível? Quem sabe não podemos ter mais solidariedade e assistência médica, já que não somos imortais?
Em meados de abril de 2011, a mídia revelou que o governo chinês havia proibido a exibição, em cinemas e na TV, de filmes que falassem de viagens no tempo e histórias paralelas, argumentando que elas trazem frivolidade para questões históricas sérias – até mesmo a fuga fictícia para uma realidade alternativa é considerada perigosa demais. Nós, do mundo Ocidental liberal, não precisamos de uma proibição tão explícita: a ideologia exerce poder material suficiente para evitar que narrativas históricas alternativas sejam interpretadas com o mínimo de seriedade. Para nós é fácil imaginar o fim do mundo – vide os inúmeros filmes apocalípticos –, mas não o fim do capitalismo.
Em uma velha piada da antiga República Democrática Alemã, um trabalhador alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que todas as suas correspondências serão lidas pelos censores, ele diz para os amigos: “Vamos combinar um código: se vocês receberem uma carta minha escrita com tinta azul, ela é verdadeira; se a tinta for vermelha, é falsa”. Depois de um mês, os amigos receberam a primeira carta, escrita em azul: “Tudo é uma maravilha por aqui: os estoques estão cheios, a comida é abundante, os apartamentos são amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais, há mulheres lindas prontas para um romance – a única coisa que não temos é tinta vermelha.” E essa situação, não é a mesma que vivemos até hoje? Temos toda a liberdade que desejamos – a única coisa que falta é a “tinta vermelha”: nós nos “sentimos livres” porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa é que, hoje, todos os principais termos que usamos para designar o conflito atual – “guerra ao terror”, “democracia e liberdade”, “direitos humanos” etc. etc. – são termos FALSOS que mistificam nossa percepção da situação em vez de permitir que pensemos nela. Você, que está aqui presente, está dando a todos nós tinta vermelha.
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Noam Chomsky anuncia solidariedade a #occupywallstreet
postado em 26/092011 em occupywallst.org
Qualquer pessoa que vive de olhos bem abertos sabe que a quadrilha de Wall Street — as instituições financeiras predominantemente — causaram um dano severo ao povo norte-americano (e ao resto do mundo). E deve saber também que assim têm agido de forma crescente por mais de trinta anos, com seu poder econômico fortificando-se radicalmente e, com isso, também seu poder político. [Deve saber] Que isto resultou em um ciclo nefasto de concentração de imensa riqueza, e portanto também de poder político, em um pequeno setor da população, uma fração de 1%, enquanto o resto rapidamente se tornou o que às vezes chamamos “precariado” — buscando sobrevivência numa existência precária. Também incorreram nessas atividades horríveis com quase total impunidade; não apenas “grandes demais para perder”, mas também “grandes demais para prender”. Os protestos corajosos em Wall Street devem servir para informar o público dessa calamidade, e para encaminhar esforç os dedicados para superá-la e colocar a sociedade em uma situação saudável novamente.