Em 15 de outubro de 2011, atendendo ao chamado global de mobilização puxado por indignados de todo o mundo, me uni ao que na época era um pequeno grupo que ocupou o vale do Anhangabaú em São Paulo, mais precisamente a área em baixo do viaduto do chá. Estamos acampados a mais de 10 dias e não somos mais tão poucos. Somos muitos e muito plurais. Somos punks, índios, anons, moradores de rua, estudantes, trabalhadores, professores, permacultores e muito mais do que isso.
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Nosso movimento tem sido visto com certa desconfiança, pois não nos enquadramos direito em antigos padrões da esquerda. Tal desconfiança se traduz na nossa proposital dificuldade em responder certas perguntas como: “por que nos unimos?”, “por que aqui e agora?” e “aonde pretendemos chegar?”. Neste texto não pretendo responder a tais perguntas, mas arriscar uma explicação de porque temos tanta dificuldade em respondê-las.
Não custa mais uma vez repetir que este texto corresponde à minha visão como alguém que vivenciou a acampada, conversou e aprendeu com diversos outros tantos acampados por mais de uma semana, mas que de maneira nenhuma pretende representar a opinião destes.
Nosso movimento é bastante plural e, apesar de termos um manifesto consensuado, nossas pautas são muito amplas e difusas para servir de explicação sobre os principais motivos de porque nos unimos. Isso é muitas vezes colocado em forma de crítica: como um movimento pode sobreviver se não tem pautas firmes comuns? Ao meu ver o motivo real que nos une nos fornece uma excelente pista para responder a essa pergunta.
Compreendo que o que nos une, não só nós em São Paulo, mas também no movimento em Wall street, em Madri e em diversos outros pelo mundo, é uma insatisfação com a estrutura da representação política. Assim, me parece que nossa dificuldade em elaborar reivindicações claras é consistente com nossa principal bandeira “democracia real/direta”. Não estamos firmes em nossas reivindicações porque no fundo sabemos que não é uma questão de reivindicar (pra quem reivindicamos se esses não nos representam?), mas de construir todo um novo sistema. Dessa forma, é muito mais consistente que nossas pautas sejam construídas e reconstruídas constante e coletivamente. Isso não significa, porém, que não estamos firmes em certos princípios. Nos enxergamos claramente como um grupo anti-capitalista, apartidário, não-violento, cujas decisões são tomadas de forma dialógica por consenso e que busca a democracia real/direta.
A segunda pergunta também costuma chegar em tom de crítica: não há crise no Brasil agora, logo não há contexto e, portanto, o movimento não deverá durar. Primeiro, não é verdade que não há contexto, o movimento se insere tanto em um contexto internacional de lutas (Espanha, Grécia, Egito, Nova Iorque etc.) como em um contexto local (diversas marchas contra o aumento da tarifa de ônibus, marcha da maconha, marcha da liberdade etc.). Em relação a não estarmos em crise, compreendo que isso é mais uma benção do que uma maldição. A maioria dos movimentos de esquerda até hoje tenderam a ser reativos, ou seja, uma resposta a algum tipo de crise. O fato de nosso movimento não ser reativo, mas construtivo, o abre para uma infinidade de novas possibilidades. Um movimento construtivo não precisa ter pressa para dar respostas. Um movimento construtivo não é necessariamente pautado por um determinado contexto que uma vez mudado dita o fim do movimento. Um movimento construtivo é livre para seguir seu próprio rumo em seu próprio tempo. “Ele não tem limites, não começou aqui e agora e vai terminar ali e mais tarde. É exatamente o que não se constitui nem tem contornos e, assim, incomoda e agride o poder constituído. Ele não tem um dentro, um o que somos e o que queremos. O movimento já está fora, já nasceu como um fora. Ele é a própria membrana entre dentro e fora.”
Algumas vezes somos confundidos com movimentos direitistas contra a corrupção. Evidentemente que somos contra corrupção, mas esse tema nem surge em nossos manifestos ou meios de divulgação. Quando gritamos “Não nos representam!” não é que um ou outro político não nos representa, mas que o sistema político não é capaz de nos representar. Soma-se a isso a compreensão de que a corrupção é inerente ao sistema capitalista, ela é apenas uma face do capitalismo mais frequente em países periféricos. Dessa forma, a luta contra a corrupção entra somente como efeito colateral daquilo pelo que lutamos.
De forma alguma acredito que buscamos solucionar questões pontuais do capitalismo. Muito pelo contrário. Brandamos por democracia direta/real. Nossa concepção de democracia direta, apesar de difusa, certamente não é reformista. Buscamos uma mudança profunda na forma de representação política e temos consciência de que isso é impossível dentro do sistema vigente. Neste sentido, compreendo tal movimento construtivo como muito mais radical do que qualquer movimento pautado em determinada crise pontual.
Por fim, não acredito que precisamos ter um objetivo fixo, pois este está sendo construído no próprio movimento. Esse é um excelente indício de que estamos indo na direção do que quer que compreendemos por democracia real. A partir do momento em que nos tornarmos previsíveis seremos presas fáceis frente ao sistema.
Há quem diga que somos lunáticos lutando contra tudo e contra todos. Acho mais honesto dizer que lutamos contra tudo e, se não com todos, com 99%. Estamos decretando o fim do fim da história. Estamos fabricando tinta vermelha.
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Marcio Moretto Ribeiro (@marciomoretto) é doutor em ciências da computação pela USP, pós-doutorando em lógica pela Unicamp e indigesto por parentesco. Esteve acampado durante os últimos dias no Vale do Anhangabaú (@AcampaSampa) e compartilha aqui suas primeiras considerações.
Publicado em: http://www.misturaindigesta.com.br/2011/10/coluna-do-leitor-sobre-ocupacao-do.html